Conto - Sangue & Sentimentos



O vento e a chuva são velhos companheiros. Permeiam minha dor tornando minha alma insensível aos reveses da vida. Sou um nada acolhido no útero da escuridão. As descargas virulentas do ego ainda ecoam na memória, mas nada mais sou que um mísero espectro sem vida. Postado na soleira da fria e solitária cripta, observo os fantasmas que acompanham minha derrocada. Estou parado no tempo, na Terra, na vida, no tudo! Um ser sem horizonte que anseia pelo golpe que lhe traga a paz.
Embora nem sempre tenha sido assim, já não me recordo mais do tempo em que a vida era colorida. Meus dias se fazem negros e já não sou mais capaz de fixar meus olhos no disco solar. Meu âmago padece sem saber se encontrará o fim de tanto esmorecer.
Um relampejar sobrevoa o mausoléu que me acolhe. Da cripta posso medir os passos que as faíscas executam no manto negro da noite. As horas se arrastam com maior morosidade. Já não há mais lua ou estrelas, tudo é breu neste meu mundo de sofrimento e morte.
Sons desconexos e distantes principiam a monótona cantilena que acompanha minha solitária vigília. De tão habituado ao troar da insossa canção, faço coro aos acordes ininteligíveis. Sei que muitas das vozes que se levantam nesta melodia, pertencem aos desafortunados que conviveram com o ser que já fui. Seus rostos estão gravados em minha consciência e por mais que os deseje esquecer, eles sempre se mostram como um pesadelo sem fim.
Alucinações ferem minha mente e transportam-me para o mundo do tempo esquecido. Sou novamente o ser que partilha a augusta companhia dos anjos. Meu reflexo alimenta os ensejos mais secretos. Meu eu liberta os sonhos mais desejados. Sou o anjo da sedução, o anjo da paixão, o anjo... caído...
-- Venham, venham! Esta noite teremos a oportunidade única de testemunhar o encontro de uma humana com um ser celestial!
Miserável! Sua ignorância me enojava, mas ele era o representante mais importante do vilarejo. Seus proclamas eram respeitados por todos. Se ele proclamasse que o sábado era domingo, todos curvavam-se diante de sua arrogante tirania.
-- Veja quantos incautos se aproximam. Sua vinda foi providencial.
-- Não vim para que você lucrasse com minha presença.
-- Eu sei. Mas se deseja conhecer aqueles a quem deve oferecer salvação, ninguém mais além de mim, poderá lhe mostrar tudo que precisa saber.
-- O modo como manipula estes pobres coitados é vergonhoso.
-- Escute bem, se não fosse por mim, estes pobres coitados, como você afirma, já teriam se matado ou imolado um ao outro. Eles não conhecem nada da vida.
-- Você também não.
-- Mas o pouco que sei, me confere o poder para administrar o cotidiano do povoado.
-- Por que não usa sua influência para elucidá-los?
-- E acha que é isto que eles desejam! Pura ilusão! Esta gente só deseja um pouco de água e um cadinho de diversão.
-- Já ouvi algo semelhante em outras ocasiões.
-- Com certeza, afinal não sou o único esperto do mundo.
-- Não, isto não é.
-- Vamos lá. A menina que escolhi é uma florzinha. Uma formosura mal desabrochada.
Maldição! Por que é mais fácil abandonar-nos nos braços da corredeira do que fazer frente a seu ímpeto e lutar contra sua demanda? A pobre criatura escolhida pelo tirano era uma menina recém saída da idade infantil. Seus olhos temerosos me encararam com servil resignação.
-- Olá. Como se chama?
-- Tesara!
-- Muito bem, Tesara, sabe por que está aqui?
-- Meu pai me disse que é uma grande honra tornar-me noiva do ser vindo do céu.
-- E você, o que pensa?
-- Não sei, senhor. Ainda sou muito nova para conhecer os mistérios da vida.
-- E se lhe afirmasse que a vida não possuí mistérios?
-- Como não? Se isto fosse verdade, não estaria tão cheia de dúvidas e medo.
-- Tem medo de mim?
-- Não. Sei que não me fará mal.
Ah, a inocência! Como soaram duras aquelas palavras. Um potente soco atingiu-me incontinente. Meu ser rebelou-se contra aquela situação, mas um breve exame a respeito dos ânimos que dominavam os presentes, revelou-me que era tarde demais para retroceder.
Olhos nos olhos, segurei-a pelas mãos e sussurrei em seu ouvido:
-- Não tenha medo. Serei carinhoso.
-- Não tenho medo. Sei que me quer bem.
Inclinando o pequeno corpo para trás, aproximei minha boca de seu delicado pescoço e mirando os espectadores, cravei meus caninos na frágil carne. Um abafado e delicado grito escapou da boca da pequena. Em poucos segundos tudo estava consumado.
O pandemônio que se seguiu foi algo animalesco. As pessoas começaram a se jogar umas sobre as outras e os instintos afloraram com tamanha violência que nem mesmo chamas seriam capazes de interromper a barbárie que se impôs.
Escudado pelo frenesi geral, acolhi o desfalecido corpo em meus braços e abandonei o local. Uma débil pulsação dava conta de que a pequena ainda trazia um sopro de vida em seu íntimo. O toque suave de sua pele em contato com minha reluzente camada de sedosa plumagem, encheu-me de ternura. Sem mais pensar, soprei-lhe a boca devolvendo-lhe a vida que tentara suprimir.
Anos se passaram desde aquela fatídica noite. A companhia da pequena se mostrou um tormento mais lancinante que as lembranças dos muitos que se viram privados de suas vidas. Seus olhos estavam sempre a me acusar por tê-la transformado em uma criatura horrenda.
-- Maldito! Por que não me matou? Seu Maldito!
-- Não consegui. Sua delicadeza, sua meiguice...
-- Para os diabos suas escusas! Seu cão do inferno!
Mesmo contrariada, ela não tinha escolha. Seu instinto a levava a caçadas sangrentas. Noite após noite, nos digladiávamos e ainda assim, nos protegíamos, pois sabíamos sermos os únicos de uma espécie híbrida.
À medida que o tempo avançava e o progresso ia se processando numa velocidade cada vez maior, Tesara ia definhando a olhos vistos. O sangue que a alimentava já não lhe fornecia toda substância de que necessitava. Ela estava morrendo.
-- Está com pena? Pois saiba que minha sorte será muito melhor que a sua, seu demônio!
-- Não faz idéia de como me arrependo de tê-la transformado como fiz.
-- Lamurias! O que pretende obter de mim? Perdão? Jamais o perdoarei!
-- Não mereço seu perdão. Minha falta foi muito grave.
-- Irá perambular pela Terra sem paz. Seus ossos não conhecerão o aconchego da tumba. Seu corpo não poderá jamais descer ao seio da terra. Irá penar pela eternidade!
Até hoje não sei se estas palavras encerravam uma profecia, uma constatação ou uma maldição. O fato é que passados alguns milênios, ainda estou aqui. Meu corpo anseia pelo repouso que todos tão futilmente menosprezam. Minha alma anseia pela paz que todos tão tenazmente insistem em fustigar. Sou uma aberração, mas sou, antes de tudo, um ser corroído pela dor.
Minha vigília finalmente me traz o resultado esperado. Um grupo de despreocupados jovens se aproxima de minha prisão. Olhos habituados ao negror das trevas, identifico todos com precisão. São cinco rapazes e três moças. Juventude perdida!
Permito que eles se aproximem do mausoléu. Minha respiração se confunde com o soprar do vento. Eles não fazem a menor idéia do que estão para vivenciar.
-- Tem certeza de que é aqui? Perguntou uma das moças.
-- Por que insiste em me contrariar? Zangou-se o rapaz para quem ela fizera a pergunta.
-- Não o estou contrariando, mas não quero passar pelas mesmas vexações de antes.
-- Não esquenta. Desta vez vai dar tudo certo.
-- Onde coloco os paramentos? Perguntou um dos rapazes.
-- Estes objetos não são paramentos, seu jumento. São os instrumentos de nossa celebração.
-- Tá, mas onde os coloco?
-- Sobre o túmulo.
-- Certo.
Por instantes, decidi permanecer oculto. A atividade do grupo despertou minha curiosidade. Apesar de repletos de símbolos a cobrirem seus corpos, eles não pareciam serem tão perdidos. Senti uma aura de afinidade com eles.
-- Então? Todos prontos? Perguntou o líder.
-- Sim!  Resposta veio em uníssono.
-- Mantenham-se de mãos dadas. Eu invocarei o príncipe das trevas.
-- Não será perigoso? Ainda tentou argumentar uma das moças.
-- Está querendo desistir? Ainda pode se mandar. Depois que tiver começado, ninguém arreda o pé.
-- Tudo bem, vamos em frente.
-- Eu, filho da noite mais escura, convoco o senhor das sombras a se manifestar entre nós!
Nada! Apenas o silêncio seguiu-se à invocação. Durante longos minutos, eles permaneceram estáticos. Pareciam dominados por uma certeza que estava preste a se transformar em decepção. Movido pelo instinto, deixei meu esconderijo e ma apresentei:
-- Desejam algo aqui?
Minha voz cavernosa e as vestes seculares que compunham meu traje, os deixou sem reação. Alguns começaram a tremer e suar frio. Outros pareciam estar próximos de uma síncope. Apenas um se manteve sereno. Mirou-me com determinação e disparou:
-- Quem é você?
-- Alguém que a maioria não gostaria de conhecer.
-- De onde veio?
-- De lá! Apontei para o mausoléu com a porta entreaberta.
-- Muito bem. Se é quem penso que seja, mostre-me seu poder.
-- O que deseja que faça?
-- Me domine!
Pobre rapaz. Demorou quase uma hora até poder voltar a raciocinar. Não que tenha utilizado todo meu poder, aliás, se o tivesse feito, ele não recobraria a razão jamais. Ainda abobado, ele me olhou com respeito.
-- Sei que é você. Sou seu servo!
-- Onde estão seus amigos?
Somente naquele instante, ele percebeu que era o único que permanecera ali. Claro que muito se devia ao fato dele ter perdido a consciência, mas isto não serviria de consolo a ninguém.
-- Malditos, são um bando de maricas! Vociferou.
-- Para onde foram?
-- Se estiverem um pouco lúcidos, até o bar.
-- Vamos até lá?
-- Sério?
-- Por que não? Acha que não seria bem vindo?
-- Pelo contrário, eles o receberão com a maior satisfação.
-- Não. Não desejo que saibam quem sou. Devo me manter incógnito.
-- Por que?
-- Nem todos estão preparados para me conhecerem.
-- Está bem. Venha comigo.
Depois de varias centenas de anos, mantinha contato com um humano. Todas minhas outras investidas, não passaram de ataques fortuitos e violentos. Uma verdadeira caça pelo precioso líquido que os mantinham vivos.
Meu visual agradou em cheio. A esvoaçante capa negra que cobria o restante de minhas vestes, conferiam-me um ar vampiresco. Meu semblante sorumbático, porém frio e severo, os bordados vermelhos que ornavam a camisa branca, o colete negro que a encimava. As botas cingindo as pernas até a altura dos joelhos, a calça colada como se fosse minha própria pele, enfim, eu os encantara.
-- Cara, visual chocante! Gritou um.
-- Hei, tem jeito de descolar um igual? Bradou outro.
-- Não dê ouvidos. Estes são bajuladores natos.
Embora pudesse sentir as vibrações discordantes de alguns, sabia que a maioria não se manifestara apenas para me bajular. Suas almas irradiavam um apelo mudo por sinais que os fizessem quebrar a imobilidade a que se haviam entregado.
Mal havia me acomodado em uma das mesas, já era capaz de identificar todos os presentes. Sentia como se os conhecesse desde sempre. Estava tranqüilo entre eles. Sei que não devia me expor de modo tão aberto, mas depois de tanta danação, que mais poderia me ocorrer?
Estávamos conversando descontraidamente quando nossa atenção foi desviada para um alarido vindo do lado de fora do bar. Parecia que uma grande confusão se instalara nas cercanias do bar. Preocupados, fomos ver o que se passava.
Da porta pudemos testemunhar a atitude mais covarde e condenável de um ser humano. Três jovens eram ameaçados por um bando de trogloditas armados de tacos de beisebol, correntes e outros objetos tão contundentes quanto.
-- São skinheads! Informou-me Gino.
-- Por que agridem aqueles três?
-- São góticos. Uma galera boa gente. São todos de paz.
-- Vou falar com eles.
-- Bem, eles são bem violentos.
-- Sei como me virar.
Aproximei-me do grupo e bradei:
-- Procuram emoções fortes?
-- Sai daqui, esquisito. A briga não é com você.
-- Briga? Pelo que vejo, isto está mais para massacre.
-- E daí? Algum problema?
-- Depende.
-- Está querendo me tirar?
-- De certo modo, sim.
-- Vá se ferrar! Se estava procurando por confusão, encontrou.
O ataque que ele realizou foi violento o suficiente para fazer qualquer um estatelar-se. Não eu. Não demonstrando o menor abalo, permaneci ereto como estava.
-- Dizia? Provoquei-o.
-- Que diabos...
-- Oh, que nome feio para estar na boca de alguém tão educado. Estava sendo o mais sarcástico possível.
-- Foi pura sorte. Não conseguirá evitar meu próximo golpe.
-- Mas eu não evitei o anterior.
-- Seu bosta!
A agressão perdeu-se no vazio. Mãos firmes crisparam no pescoço obeso do agressor. Com a força que me é peculiar, elevei-o até que estivesse a altura de meus olhos, então mirrei-o com firmeza e o adverti:
-- Por que não chama seus amiguinhos e se mandam?
-- Cara... está... está...
Sua voz não conseguia vencer a resistência imposta por minhas mãos. Eu o dominava com tranqüilidade. Os outros, vendo o líder dominado, perderam o ímpeto agressivo e ficaram esperando pela reação que não veio.
-- Vou falar apenas mais uma vez, caiam fora!
Mesmo que se julgasse muito forte, o contato de minha mão em sua garganta tirou qualquer vontade de reagir. Mal sentiu os pés tocarem o chão, ele virou e saiu em disparada carreira pela noite. Seus companheiros o seguiram.
-- Estão bem? Perguntei ao me aproximar dos três que se mantinham prostrados no chão.
-- Creio que sim. Respondeu um deles.
-- Eles nos cercaram de uma hora para outra. Falou o outro rapaz.
-- Meu joelho está ferido.
O tom lamurioso e delicado fez-me voltar na direção do último integrante do grupo. Ao vislumbrar-lhe o semblante, contive minha admiração. O formoso rosto de uma jovem sorria-me com segurança.
-- Obrigada!
-- Não por isto. Estão indo para o bar?
-- Não. Estamos indo para uma festa.
-- Posso acompanhá-los?
-- Pensei que estivesse acompanhado.
-- Meu amigo não se importará se o deixar com os outros.
-- Sendo assim...
Desde que me afastara do convívio humano, mantivera o firme propósito de não permitir que as emoções me afetassem. Naquela noite vacilei e senti o coração acelerar. Os olhos sérios da jovem não deixavam minha mente em paz.
-- De onde vem? Perguntou-me o jovem que parecia estar desacompanhado.
-- De muito longe. Respondi de modo enigmático.
-- Também é gótico? Perguntou-me a jovem.
-- Creio que não. Ao menos não sei se posso me julgar um.
-- Quais suas preferências? Inquiriu-me o que parecia ser o namorado da moça.
-- Não as tenho. A não ser uma, mas prefiro não revelá-la.
-- Algo que possa comprometê-lo? Voltou a me inquirir o possível namorado.
-- Mais que possam imaginar.
-- Não questionamos o comportamento particular das pessoas. A nós interessa apenas que saibam respeitar nosso espaço.
-- Não solicitaria acompanhá-los caso tivesse intenção de desrespeitá-los.
-- Sendo assim, melhor que nos apresentemos. Eu sou Ernesto.
-- Eu, Joaquim.
-- E eu, Alva.
-- Podem me chamar de Nero.
-- Podemos? Indagou Ernesto.
-- Meu verdadeiro nome é impronunciável na língua local.
-- De onde vem, afinal?
-- Conhecem as terras frias das montanhas do norte europeu?
-- Já ouvimos falar.
-- Minha aldeia fica encravada num dos vales que se encontram perdidos em meio às rochas e a neve.
-- É romeno?
-- Não. Sou um magiar.
-- Húngaro?
-- Sim. Se bem que quando nasci ainda não éramos designados assim.
-- Hei, dá um tempo. A Hungria recebeu esta denominação há muito tempo.
-- Eu sei.
Um olhar mais enigmático encheu meus acompanhantes de incipiente temor. Seus olhos expressaram um medo inexplicável. Suas almas registraram a exatidão de minhas palavras, mas suas mentes recusaram-se a aceitar seu sentido.
-- Estamos chegando. Anunciou Alva.
O local assemelhava-se a um casarão abandonado. As luzes bruxuleantes, que se distribuíam de forma aleatória, não eram suficientes para conferir uma iluminação que permitisse poder divisar as pessoas e o ambiente com maior clareza. A penumbra era meu domínio.
A aparente falta de cuidado observada no exterior não encontrava reflexo no interior da construção. A decoração era esmerada. Não luxuosa, mas harmônica. Todos elementos de um mundo permeado pela dor e pela sensibilidade pareciam pulsar naquele ambiente.
Entre tantos seres entrevados, minha aparência esguia e elevada não chegou a despertar o menor interesse. Ali eu era apenas mais um. Sondei cada recanto do local e antes de me acomodar, já sabia quantas pessoas transitavam pelos salões.
-- Gostou? Perguntou-me Alva.
-- Tétrico, não?
-- Maneiro.
-- Por que se portam de modo tão sombrio?
-- Não o agrada? Disparou Ernesto.
-- Se tivesse vivido uma misera parcela de minha maldita existência, jamais desejaria conhecer mundo tão soturno.
-- Nós amamos nosso modo de vida.
-- Eu sei!
Não tinha a menor intenção de iniciar uma discussão qualquer que fosse sua natureza. Meus ânimos estavam centrados na beleza que emanava da doce Alva. Novamente sentia os tecidos de meu corpo vibrarem além do normal. Estava embevecido, talvez até, embriagado pela visão que Alva representava.
Quando Ernesto se afastou conduzindo Alva até a pista de dança, sondei Joaquim:
-- Eles são namorados?
-- Não oficialmente.
-- Como assim?
-- O Nest arrasta um caminhão pela branquinha, mas ela sempre dá um jeito de mantê-lo à distância.
-- Por que?
-- Sei lá! Às vezes ela me parece muito estranha. É como se estivesse esperando por alguém que a domina mesmo sem conhecer.
-- Seu amigo sabe disso?
-- Sim. Ernesto é meio mandão, mas é boa gente. Acredito que ele esteja mais preocupado com a segurança de Alva do que com o sentimento que o inspira.
-- Muito louvável! Amigos assim são raríssimos.
-- Eles são mais que amigos. Foram criados juntos. Quando a família de Alva faleceu, a família de Ernesto assumiu sua guarda.
-- Mas então...
-- Desculpe-me, eles estão me chamando.
Senti-me perdido naquele salão. As pessoas pareciam todas hospitaleiras e gentis, mas minha mente ainda vagava a procura dos encantos de Alva. Mesmo entre as densas névoas que dominavam o lugar, apesar do fosco imperar pelos salões, meus olhos a caçavam e a miravam a todo instante.
-- Divertindo-se, bonitão?
-- Heim?
Uma roliça moça havia me abordado. No momento em que a senti, soube que ela destoava das demais. Sua alma emanava sentimentos oriundos de esfera diversa daquela que alimentava as vibrações dos demais. Ela estava à procura de algo mais quente. Para infelicidade dela, eu não era caça, mas sim o caçador.
-- Está gostando da zorra?
-- É diferente de tudo que já vi.
-- Logo que entrou saquei que não é do tipo que freqüenta lugares como este.
-- Para ser sincero, não sou.
-- Tudo bem. Também não morro de amores por isto aqui. Só estou acompanhando a doida da minha prima.
-- Não lhe apraz o ambiente e as pessoas?
-- Tudo bem que são legais, mas minha arena é outra.
-- Sua arena?
-- É. O lugar onde me sinto melhor.
-- E que lugar seria?
-- Uma cama bem confortável. E de preferência, com uma companhia bem máscula.
-- Ah!
-- Está a fim?
-- Não iria apreciar alguém como eu.
-- Como sabe? Já experimentei de tudo. Posso não gostar daquilo que experimento, mas detesto mais ainda ficar sem experimentar.
Apenas um riso débil foi minha resposta. Apesar de toda crendice a respeito do medo extremo que ser semelhante a mim desperta nas pessoas, não houve a menor manifestação de receio. Minha aura exala sedução, jamais temor.
Deixamos o salão e fomos até um local menos concorrido. Encobertos pela atmosfera escura, começamos a trocar carícias excitantes. Meus lábios sorviam os dela com avidez enquanto nossas mãos bailavam sobre nossos corpos. Explorávamos o território que prometia tornar-se uma aventura muito gratificante.
A rigidez dos mamilos deixava evidente sua excitação, mas não bastasse este detalhe, ela tremia, gemia e arfava como se estivesse em pleno cio. Assustei-me um pouco com o comportamento totalmente libidinoso que ela apresentava, mas não interrompi nossas ações.
O vento que soprava tornava a noite um oceano de odores tão afáveis que os sentidos se colocavam ainda mais despertos. O perfume que ela usava era doce, mas não vulgar. Seu corpo transpirava o desejo que ardia em suas entranhas. Eu aceitava seus caprichos, mas minha mente concentrava-se na torrente rubra que seguia seu curso com intensidade cada vez maior.
Minha concentração era tamanha que seguia o curso do precioso líquido por todo o corpo. Sabia que o estado excitado esquentava-o, mas não estava interessado na temperatura do mesmo. Minha atenção desviou-se um pouco ao sentir que minha masculinidade era dominada pela furiosa boca que me beijara.
Não fazia parte de minha natureza mesclar os objetivos que me mantinham em atividade. Poucas foram as ocasiões em que permiti um contato mais íntimo com alguém que fosse se transformar em minha caça. No entanto, a situação atingira um ponto onde já não havia como deter as ações.
Depois de atender ao anseio de minha companheira, decidi assumir o controle da situação. Elevei-a até poder tocar-lhe a face e beijei-a com todo carinho que podia externar. Controlando-me ao máximo, chupei-lhe o pescoço sem penetrar meus caninos na tentadora jugular.
O esfuziante ato estendeu-se até que ela se sentiu tangida pelo êxtase. Sem ter como se controlar, ela se deixou pender em meus braços. Acolhendo-a com firmeza, aproveitei seu estado de semidesfalecimento e efetivei meus anseios.
Lentamente o sangue foi deixando o corpo que até a pouco mantinha-se pleno de vida e desejo. Minha sede arrefecia-se à medida que sorvia a essência vital daquela tão decidida jovem. Sufoquei minha revolta levando o ato até seu término tenebroso. Mais uma vida se fora.
Nunca desejei investigações que pudessem ligar minha existência com o desaparecimento de minhas vítimas. Ainda com o corpo inanimado em meus braços, volitei sobre o local e desapareci na escuridão. Após deixar o corpo em um local de difícil acesso, voltei ao bar e, utilizando sons inaudíveis para os padrões da audição humana, apaguei, de suas memórias, as lembranças de minha presença.
Novamente enclausurado na cripta, sentia prazer e repulsa mesclarem-se em meu íntimo. Toda vez que retornava de uma caçada o sangue ainda pulsava fresco em minha garganta. Saber que uma vida se fora me tornava apático e sorumbático.
A chuva intensificou seu poderio. Os estampidos trovejantes pareciam acusar-me de crimes que não tinha como evitar que se efetivassem. Minha sobrevivência estava condicionada ao sorver da seiva da vida.
Desta vez a angústia se fez ainda mais cruel. A tortura fundia-se ao arrependimento deixando-me entregue a brados enfurecidos que golpeavam minha integridade. Nesta noite um outro fantasma juntou-se aos tantos outros que superpovoavam minha prisão. Eu estava sendo consumido pela dor de minhas vítimas.
Entre tanto sofrimento, um brilho novo ameaçava romper minha alma lancinante. O sereno rosto de Alva não abandonava minha mente. Seu sorriso e sua natural descontração haviam me cativado. Meu coração batia descompassado e minha sede aumentou impedindo que o sangue que vazava em minhas entranhas saciasse a necessidade de caçar.
A madrugada avançava veloz pela senda do tempo. Os últimos pingos da chuva ainda bailavam de um umbral a outro. As ramas verdes deliciavam-se com os estertores da dádiva celestial. Apenas meu âmago rebelava-se contra tanta paz.
Ensandecido, abandonei minha clausura e vaguei pelas ruas quase desertas. Os poucos transeuntes não chegavam a se importar com minha presença. A maioria estava embriagada. As prostitutas ocupadas em conseguir um freguês a mais. Eu sem saber onde encontrar a redenção de minha existência.
O instinto me levou até o quintal da casa da fonte de minha recém adquirida loucura. O silêncio dominava tudo ao redor. Nem mesmo um miado ou um latido. Às vezes minha presença servia para afastar os indícios de vida. A noite, mais uma vez, me concedia seu regaço.
Antes que pudesse penetrar no quarto que julgava pertencer a doce jovem, sons abafados ganharam meus ouvidos. Virei-me na direção de onde vinham e constatei serem Ernesto, Alva e Joaquim que caminhavam sem compromisso pelas ruas.
-- Cara, foi uma noite e tanto! Regozijava-se Joaquim.
-- Não o vi se divertir muito. Comentou Alva.
-- Isto porque a pequena que escolhi teve que ir embora muito cedo.
-- Hum, pequena!? Penso que esteja precisando de umas dicas de como abordar uma garota. Zombou Alva.
-- Por que?
-- Pequena é um termo antiquado.
-- Acha que não sei cantar uma garota? Melindrou-se Joaquim.
-- Hei, não vamos tornar noite tão bela em um momento de discórdia. Interrompeu Ernesto.
-- Você está certo. A noite foi muito boa para estragarmos. Anuiu Alva.
-- Também acho.
As despedidas se estenderam por longos minutos. Por acreditarem que têm todo tempo do mundo a seu dispor, os jovens não se importam em ultrapassar os limites que suas forças lhes impõem. Um pouco enfurecido, fiquei aguardando que tudo terminasse.
Quando Alva finalmente chegou a seu quarto, posicionei-me de modo a poder contemplá-la. A visão era tentadora demais. Mais uma vez usei meus dons e penetrei na distraída mente. Sem ter consciência daquilo que fazia, ela voltou-se na minha direção e ficou mirando-me com os olhos vazios.
Não! Não estava a procura de um fantasma ou de uma mulher semimorta. Se conseguisse te-la em meus braços, que fosse tomada por toda sua razão. Não me contentaria com uma sonâmbula. Precisava assediá-la quando estivesse lúcida.
Os dias seguintes foram uma tortura sem fim. Objetivando obter êxito em minha nova empreitada, passei a seguir minha fonte de paixão por todos os lugares. Nem mesmo a forte luz solar me impediu. As tecnologias humanas me eram muito úteis.
Duas semanas se passaram até que minha mente tivesse estabelecido um plano isento de falhas. Regozijei-me com minha astúcia. Em breve poderia ter a companhia daquela moça. Ao chegar a esta constatação, um amargo e ardente fluir ganhou minha garganta.
-- Maldição! Vociferei.
Através de minha sondagem, descobri a rotina que embalava o dia-a-dia de minha paixão. O horário da escola, as amigas, a maioria fúteis, as idas a biblioteca, as saídas noturnas, enfim, podia encontrá-la quando bem entendesse sem dar a entender que provocara tal situação.
No sábado preparei-me com todo esmero que um cavalheiro deve ter quando deseja apresentar-se diante de uma dama. Sei que os tempos são outros e as convenções antigas já não se aplicam mais, mas gosto de manter meu estilo. Embora portando vestes modernas, mantive a classe esperada de um galanteador.
O local escolhido para a abordagem era um ponto de encontro dos jovens que pululavam a cidade. Os estilos mais esquisitos desfilavam e se esbarravam pelo acanhado lugar. O som ensurdecedor daquilo que eles chamavam de banda ecoava dominando todo o ambiente. Mal dava para ouvir alguém que estivesse gritando junto aos ouvidos.
Sabendo que a jovialidade era pré-requisito exigido a qualquer um que desejasse sucesso nas investidas, conformei meu semblante de acordo com o gosto dos freqüentadores. Minha aparência em nada lembrava o homem que os livrara dos agressores. Mesmo que não houvesse manipulado suas mentes para que não se lembrassem de minha presença, não seriam capazes de me reconhecer.
Sentei-me em uma mesa um pouco afastada e esperei. Havia tramado tudo e sabia que ao chegarem, haveria apenas minha mesa e mais nada onde pudessem se acomodar. O lugar estrava repleto.
-- Droga! Esbravejou Joaquim ao notar o lugar todo tomado. Não sobrou lugar algum para nos sentarmos.
-- Tudo bem. Alva tentou conciliar. Vamos nos arranjar em qualquer canto.
-- Estou vendo uma mesa com três lugares vazios. Animou-se Ernesto.
-- Também já vi. Rosnou Joaquim. Mas tem um babaca ocupando-a.
-- Apenas uma cadeira. Insistiu Ernesto.
-- Tá. Vai chegar no sujeito e falar: com licença, será que poderíamos nos sentar a sua mesa?
-- Não com estas palavras, mas é quase isto.
-- Cara, você pirou!
-- Esperem aqui.
Ah, como é doce a satisfação de constatar que seus planos se tornam realidade. A noite seguiu tal qual minhas aspirações. A companhia de Alva era uma dádiva que não me pertencia, mas usaria todas minhas energias para torná-la minha.
Desde que eles se aproximaram, mostrei-me solicito e amistoso. Não que seja falso quando me porto desta maneira, mas daquela vez tinha interesses muito além de apenas mostrar-me gentil.
Não desejava manipular a mente da jovem, mas isto não me impediu de utilizar todo magnetismo que me é pertinente. Toda vez que nossos olhares se cruzavam, fazia com que sua alma registrasse as emoções que dominavam a minha. É evidente que isto se traduz em uma interferência direta no ânimo de minha pretendida, mas não a obriga a aceitar minha corte.
Em determinado instante, quando seus dois companheiros se ausentaram, aproveitei para apresentar minhas razões. Sabendo que ela mantinha um flerte com um dos jovens, agi discretamente.
-- Seus amigos estão um pouco nervosos.
-- Também notei. Não estavam assim antes de chegarmos.
-- Algum problema?
-- Creio que a agitação.
-- Pensei que estavam acostumados.
-- Estamos, mas existe uma vibração estranha no ar.
-- Você também a sente?
-- Sim. Não consigo defini-la, mas sim.
-- Entendo.
-- Você não me parece tocado por ela.
-- Apenas controlo minhas reações. Sou tão suscetível, ou mais, as vibrações do que possa imaginar.
-- Quando cheguei, pareceu-me já conhece-lo.
-- Quem sabe.
-- Mas não consigo lembrar-me de onde.
-- Talvez de uma outra ocasião.
-- Sim, se já o conhecesse, certamente seria de uma outra ocasião.
-- Não. Não foi com este sentido que afirmei ser de uma outra ocasião.
-- A que se refere, então?
-- Outras vidas.
-- Acredita em tal possibilidade?
-- Acredito em tudo que minha razão me prova ser verdadeiro.
-- O que procura aqui?
-- Alguém especial.
-- Nossa, quem poderia ser.
-- Quando a encontrar, saberá.
Mais que as palavras, os olhares dialogavam com uma profundidade que só as almas irmanadas são capazes de registrar. À medida que a sentia envolvida por meu magnetismo, voltava a ter as pulsações aceleradas. Sim, aquela era a minha prometida. Custasse o que custasse, ela seria minha.
Depois daquela noite, muitos outros encontros foram “arranjados”. Não desejando assusta-la, encontrava-a sempre na companhia de alguém. Assim, mantive-me em estado de espera por longos seis meses. Pode parecer muito, mas para alguém condenado a vagar pela eternidade...
Além disso, uma conquista sempre é mais compensadora quando se mostra trabalhosa. Quanto mais precisamos nos empenhar em conquistar, tanto mais nos torna prazeroso o exercício da sedução. Neste quesito, Alva mostrava-se uma verdadeira ave furtiva. Mesmo atraída, ela conseguia esquivar-se.
Através do contato que mantive com ela, aprendi a respeitar uma parcela dos mortais. O grupo ao qual ela estava aliada mostrava-se sempre digno e harmônico. Nunca havia encontrado pessoas que se portassem com tanta lealdade e consideração para com os seus.
Este detalhe do relacionamento não estava em meus planos. Devido a minha linhagem, estava habituado a aproximar-me dos aglomerados urbanos apenas para saciar minhas necessidades, não era o que ocorria desta feita. Senti que um apego sincero desenvolvia-se em meu íntimo.
Ao me tornar mais assíduo ao recanto onde eles se reuniam, passei a receber tratamento cordial de todos. Não havia nuances de oportunismo ou interesses ocultos, apenas congraçamento. Talvez fosse este estado de convivência que meu dileto mestre tentara me fazer acreditar que fosse possível atingir.
Toda minha disposição em prosseguir com o jogo de sedução foi truncado com a presença de uma ameaça. No exato instante em que o rival se mostrou presente, senti meus pelos eriçarem. Um outro de minha espécie estava na cidade.
Não demorou muito para nos encontrarmos. Conhecia-o muito bem. Nascido em lar paupérrimo, fora contaminado por um duque que, ferido, prometera-lhe qualquer pagamento por seu auxílio. Desde então, perambulava pelo planeta a procura de vítimas que saciassem sua insana sede de vingança.
-- Olá, Lorde Dtikun.
-- Varjianski!
-- Ainda recorda-se de mim?
-- Como poderia esquecê-lo?
-- Espero que não traga ressentimentos em sua alma. Eu, por mim, já esqueci os fatos ocorridos.
-- Como não? Foram suas atitudes que precipitaram todos os fatos.
-- Bem, não consta que tenha lamentado a sorte dos miseráveis que sucumbiram sob as armas dos invasores.
-- Não imagina o quanto está errado!
-- Por enquanto pretendo manter-me amistosamente nesta cidade. Desejo que possa respeitar esta minha disposição.
-- Enquanto mantiver-se distante de meus interesses, nada efetuarei que possa atingi-lo.
-- Certo. Sendo assim, estamos combinados. Vou procurar um canto para me encostar.
-- Que seja o mais distante daqui.
-- Não se preocupe, meu faro está em perfeito estado. Sei reconhecer o território de um igual.
-- Nunca seremos iguais!
A ousadia, talvez mais a arrogância, daquele verme me fez perder o controle habitual. Cenas antigas chegaram a minha mente e fizeram com que minha dor se alastrasse contaminando porções ainda sensíveis de minha alma. Não contava com a presença de um ser tão desprezível vagando pela cidade.
O enfrentamento, que havíamos acordado em evitar, não demorou a ser deflagrado. Alva havia marcado um passeio com alguns amigos. O local escolhido ficava muito além daquele que poderia ser considerado meu território. Estando presente ao passeio, mantive-me em alerta.
-- Parece um pouco alheio, esta noite. Considerou Alva.
-- Lembra quando conversamos sobre vibrações?
-- Sim. Está sentindo alguma ruim?
-- Não sei ao certo se é ruim, mas pressinto perigo.
-- Quer que fale com os outros?
-- Apenas que se mantenham alertas.
-- Está bem.
As reações foram diversas daquela esperada por mim. A maioria ouviu e fez que não escutou. Uma parte dos integrantes do grupo, iniciou um verdadeiro festival de chacotas. Como havíamos nos tornado um tanto íntimos, Ernesto me abordou mais diretamente.
-- Hei, não vai m dizer que está com medo! Vem cá, é a primeira vez que faz isto?
-- Não. Não é a primeira vez, nem estou com medo.
-- Liga não, também tive muito medo da primeira vez.
Minha preocupação era tão evidente que mesmo o mais claro argumento não conseguiria quebrar a jocosidade dos festeiros. Contrariado, me fechei num estado de atenção premente.
A meta do passeio era um cemitério localizado num dos bairros mais chiques da cidade. Os mausoléus existentes ali eram verdadeiras obras de arte. As esculturas, alto e baixo relevos possuíam tamanha riqueza de detalhes que era impossível não perder minutos a contemplá-los. Ao estar diante daquelas estruturas, sentíamo-nos numa verdadeira galeria de arte.
Tudo corria de modo tão agradável que mesmo eu comecei a pensar que minha atenção era despropositada. A noite chuvosa impedia que pessoas incompreensivas tivessem a oportunidade de se colocarem em nosso caminho. O tempo afastava os obstáculos.
Sentindo minha prontidão contínua, Alva aproximou-se e iniciou um diálogo informal:
-- Não o vejo relaxar um único segundo. Por que não esquece um pouco suas preocupações e se integra ao grupo?
-- Estava sondando o ambiente.
-- Não tem mais ninguém aqui. Só nós e os mortos.
O sorriso que ela deixou escapar por entre os lábios foi o espetáculo mais maravilhoso que havia assistido. Seus olhos brilharam tão candidamente que pareceram um adorno a mais em seu já belo semblante. Sem dar-nos conta, beijamo-nos.
-- Desculpe-me. Manifestei-me afastando após o beijo.
-- Não se desculpe. Também desejei este beijo.
-- Mas o Ernesto...
-- Estamos um pouco balançados.
-- Mais um motivo para que não tivesse acontecido.
-- Você é engraçado.
-- Por que?
-- Sei que tem me observado além do normal para um amigo, mas quando a oportunidade surge, preocupa-se mais com um outro que com você mesmo.
-- Não é minha intenção ser o causador de qualquer espécie de sofrimento a vocês.
-- Eu sei. Este seu jeito de posicionar-se com lealdade em todos os momentos, cativou-me. Há dias que tento explicar isto para o Ernesto, mas ele parece não querer entender.
-- Ele a ama.
-- Eu pensei que também o amasse, mas depois que nos conhecemos sinto que o que existia não era amor.
-- Talvez esteja enganada. Quem sabe o que havia era amor e o que há é que não seja.
-- Não. Sempre esperei pelo momento em que sentiria meu coração pulsar tão intensamente por alguém. Sei muito bem o que estou sentindo.
Antes que pudesse agir para contornar aquela situação delicada, um vulto ameaçador deslizou entre os túmulos e se mostrou ao grupo. Varjianski tinha a aborrecente mania de entradas espetaculosas.
-- Olá rapazes e moças!
-- Quem é você? Indagou Miguel, o líder.
-- Posso dizer que não sou o coveiro, afinal já é muito tarde para um coveiro permanecer em um cemitério. Também não sou um segurança, pois já não há mais seguranças que fiquem acordado em seus turnos. Muito menos sou policial, não acredito que algum deles teria coragem para tanto. Quem seria eu, então?
O tom de deboche deixou claro que ele havia me visto. Seu modo provocativo de se manifestar acabou me irritando mais do que seria recomendado. Esquecendo alguns pequenos detalhes da personalidade de meu rival, encarei-o:
-- Eles estão comigo!
-- Ora, ora, como este mundo é pequeno mesmo. Se não é meu velho amigo Dtikun!
-- Nunca fomos amigos.
-- Não. Tem razão. Nunca fomos amigos. Mas também não éramos inimigos.
O riso irônico que soou na noite foi como uma ofensa a tranqüilidade que reinava até então. Por um instante compreendi o perigo que aquela presença representava. Perigo para meus amigos e para mim.
-- Lembre-se das regras.
-- É claro que me lembro. Mas se você as recorda, sabe que está em meu território.
-- Anda esquecido de como marcar um território.
-- Talvez, mas um igual pode sentir a presença de seu próximo a milhas de distância.
-- Considere uma cortesia esta hospitalidade.
-- Oh, é claro que eu poderia agir assim, mas a hospitalidade deve ser oferecida e não requerida.
-- Quem é este sujeito? Interveio Ernesto.
-- Não contou a eles quem você é? O tom irônico me fez ver que ele iria até o fim em suas intenções. Como tem evitado que eles percebam quem é?
-- O que ele está dizendo? Perguntou Joaquim.
-- Talvez fosse o caso de deixá-los a sós para que ele possa revelar-lhes quem realmente é. Mas pensando bem, talvez ele não o faça se eu me for. É, penso que seja melhor eu permanecer por aqui.
-- Você não é bem vindo entre nós! Proclamou Miguel.
-- Oh, quanta discriminação! O sarcasmo empregado por ele era aviltante.
-- Quem é ele? Sussurrou-me Alva com temor.
-- Deixem-me que eu me apresente. Sou Varjianski, um servo inútil das terras dos Urais.
-- Um russo! Exclamou Ernesto. O que faz aqui?
-- O mesmo que vocês. Admirando as obras de arte.
-- Pois tem outras daquele lado. Indicou Miguel com autoridade.
-- Não são tão belas quanto as daqui.
-- Pois que espere até termos terminado nossa reunião.
-- Estão em reunião? Oh, me desculpem. Pensei que estavam apenas passeando pelo local.
Novamente o riso de escárnio fendeu o silêncio noturno. Mais que procurando por uma vítima, ele estava criando um clima para vomitar seu tão precioso segredo. Não sabia como reagiriam meus amigos, mas temia que pudessem opor-se a minha presença entre eles depois que soubessem a verdade.
-- Vá embora! Exigiu Miguel.
-- Alto lá, fedelho! Antes de arvorar-se detentor de direito questionável, devia procurar saber quem controla o lugar.
-- Este lugar é público. Qualquer um pode utilizá-lo.
-- Não mais! E mesmo que ainda o fosse, mais uma razão teria eu para permanecer aqui.
-- Melhor irmos. Advertiu Samantha. Ele já estragou a noite mesmo.
-- É. Concordaram os demais. A noite já era.
-- Esperem! Varjianski berrou ao perceber que nos afastávamos. Ainda tenho um aparte.
-- Não temos mais nada a conversar. Sua presença nos ofende. Respondeu Miguel.
-- Talvez não saibam, mas costumo cobrar um preço pelo uso de minhas propriedades.
-- O cemitério não lhe pertence.
-- Isto poderia ser discutido, mas infelizmente meu advogado não está presente.
-- Fique com sua ironia e que ela o faça engasgar-se, seu monte de excremento!
-- Agora chega! Cansei de bancar o bom moço!
A repentina transformação de Varjianski pegou a todos de surpresa. Ao mostrar-se como era, ele causou o impacto que desejava. A maioria tremeu e procurou ocultar-se, mas estavam todos paralisados.
-- Varjianski, não ouse mais do que pode realizar. Adverti-o.
-- Oh não, meu amigo, é você quem não deve ousar se passar por quem não é.
-- Do que ele está falando? Indagou-me Miguel.
-- Não lhes contou, não é? Por que não aproveita o momento e lhes revela quem é?
-- Tem algo a nos dizer? A firmeza de Miguel era inquestionável. Mas embora fosse rígido em seus conceitos, jamais praticara qualquer injustiça.
-- Não suportariam a verdade. Tentei contornar a situação.
-- Por que não deixa que descubramos?
-- Não haverá um depois caso insista.
-- Confie em nosso julgamento.
O vento se fez mais vigoroso. A chuva voltou a intensificar seu mergulho na atmosfera, os relâmpagos cortavam o céu fazendo com que a paisagem assumisse uma aura tétrica. A revelação não podia mais ser adiada.
-- Antes de ouvi-lo, olhem para mim! Exigiu Varjianski.
Perplexos, todos olharam para Varjianski. Seu semblante desfigurado expunha sua animalesca aparência. Os olhos vermelhos e os caninos avantajados tornavam-no uma sombra distante da idéia que estava associada a um ser humano.
-- Que diabos é isto? Murmurou Miguel.
-- Parem de tolices e deixem de asnices. Sabem muito bem o que sou. Sou um vampiro!
A celeuma que se instalou só era superada pelo ribombar dos trovões. Rostos crispados tentavam expressar a imensidão da pasmice que se abateu sobre todos. Mesmo sendo um grupo acostumado a literatura e obras que versavam sobre o tema, não estavam prontos para um encontro tão direto.
-- O que foi? As criancinhas estão com medo?
Alva agarrou-se a mim com tanta força que suas unhas penetraram em minha carne. O sangue verteu e embebeu seus dedos. Tremendo ela se abraçou com mais força e soluçava enquanto esperava que tudo terminasse.
-- Muito bem, caro amigo. Eu já me revelei, por que não faz o mesmo?
-- O que quer mais? Bradou Miguel.
-- Que este covarde se mostre como é!
A situação estava fora de controle. Varjianski não arredaria um milímetro sequer em sua determinação. Ele não retrocederia nem colocaria um término na situação enquanto não houvesse atingido seus objetivos. Encarando-me com desdém e voltando a mirar o grupo, ele gritou:
-- Este que os acompanha, por quem têm dedicação louvável, não passa de um monstro. Mostre-se como é, seu covarde! Revele-se e assuma que também é um vampiro!
Não havia mais como ocultar a verdade. Meus sonhos, os únicos em tanto tempo de pesadelo, ruíram como se soprados pela impetuosidade do vento que nos envolvia. Subitamente, senti a pressão das mãos de Alva se afrouxar. Tomada de pânico, ela me encarou não querendo acreditar.
-- Não é verdade, é? Diga que não é!
-- Não posso!
-- Então... quer dizer... você é mesmo um vampiro?
-- Sim, eu sou!
A revelação caiu como uma bomba. Todos olhavam-me como se estivessem despertando de um longo sono. Alguns moveram-se para trás e dispunham-se a deixar o local, mas Miguel manifestou-se com segurança:
-- Esperem! Não devemos praticar injustiças, lembram-se? Nosso amigo pode ser um vampiro, mas se observarmos com muita atenção ambos, veremos quão diferentes são. Nosso amigo sempre se portou respeitosamente entre nós. Jamais o flagramos em atitude que pudesse depor contra seu caráter. Já quanto a este outro... bem, este não passa de um animal raivoso que devemos combater.
A ovação em concordância com as palavras de Miguel começou discreta, mas logo contagiou a todos. Mostrando-se tão confiante quanto antes, Miguel aproximou-se e me envolveu em fraterno abraço. Sua ação me deixou muito comovido.
-- Como antes, aceito nosso amigo com a mesma determinação. Aquele que não estiver disposto a vê-lo mais como tal, que se manifeste.
Em segundos, me vi cercado pelos integrantes do grupo. Todos queriam externar a concordância com as palavras de Miguel. Única exceção foi o afastamento de Alva. Aquela a quem mais ansiava, mantinha-se distante.
A reação do grupo deixou Varjianski revoltado. Ao mesmo tempo em que era aceito por todos, todos o renegavam relegando-lhe uma condição de vil e desprezível. Sua fúria eclodiu com violência. Bradando palavras desconexas, ele avançou sobre o grupo. Por estarmos unidos, seu ataque mostrou-se infrutífero, mas Alva que se mantivera afastada tornou-se uma presa fácil e valiosa para o vilão.
-- Socorro! Ela gritou ao ser agarrada por Varjianski.
-- Pode gritar, tola, logo estarei sorvendo este precioso liquido que a mantém viva.
Ao ouvirmos Alva gritar, voltamo-nos em sua direção. Constatado o motivo do grito, atirei-me para frente. Detive meus movimentos e mirei os olhos de Varjianski. Sem demonstrar a menor emoção, gritei:
-- Solte-a!
-- Nunca!
-- Sabe que não pode me enfrentar.
-- Já faz tempo que não nos encontrávamos. Desde nosso último encontro aprendi muito e desenvolvi muitas habilidades. Já não sou mais um simples servo.
-- Ainda assim, não pode me vencer.
-- Veremos.
Sem largar Alva, Varjianski lançou suas energias sobre mim. Não pude desviar-me por temer que elas pudessem atingir um de meus amigos. Recebi toda carga e bambeei. Não cheguei a ficar tonto, mas minha reação foi suficiente para que Varjianski fugisse com Alva.
-- Para onde ele foi? Perguntou Ernesto.
-- Não se preocupem. Eu a trarei de volta.
Sem esperar por argumentação alguma, fiz esvoaçar minha capa e lancei-me ao ar. Mesmo sob a escuridão noturna, poderia encontrar aquele verme. Seu odor pestilento era como uma trilha inconfundível.
Agarrado a Alva, ele não conseguiu ir muito longe. Não demorei a encontrá-lo em um beco próximo ao cemitério. Ele estava prestes a cravar os dentes no pescoço de Alva, quando minhas energias o atingiram. O choque o lançou a metros de distância.
-- Desgraçado! Vai se arrepender.
Nova emissão de energia emanou de suas mãos. Desta vez foi muito fácil refuta-la. Em resposta ao fracassado ataque, atingi-o com mais energias. Ele titubeou e caiu. Não estava derrotado apenas atordoado. Uma batalha entre vampiros poderia durar horas seguidas.
Enquanto os ataques se sucediam, o grupo chegou ao beco. Ernesto amparou Alva e a levou para um local seguro. Os demais mantiveram-se a distância observando o desenrolar da batalha.
Varjianski estava se enfraquecendo rapidamente. Por mais que ele houvesse se aprofundado nos estudos do mundo vampírico, jamais poderia fazer frente a um autêntico representante da espécie. Os dons que possuímos são natos, não podem ser adquiridos ou aprendidos. O máximo que ele poderia conseguir era desenvolver as habilidades que já possuía.
Antevendo a iminente derrota, ele tentou uma última cartada. Deslocando-se tão rapidamente que mais pareceu desmaterializar-se, ele avanço sobre Alva. Não na intenção de tomá-la novamente, mas sim para matá-la. O punhal que segurava só não atingiu seu objetivo porque me interpus entre a lâmina e o peito de Alva.
A dor lancinante que senti fez-me quedar sobre o solo. O sangue jorrou encharcando minha veste. A visão começou a embaçar e as pernas tremeram. Só não me entreguei ao desfalecimento por temer que Varjianski tentasse agredir meus amigos.
-- Aproveite seus últimos minutos de vida, Dtikun. A lâmina que tem cravada em sua carne é de prata pura e foi abençoada por seis papas. Além disso, foi embebida em infusão de alho. Como vê, muito mortal para nossa espécie.
-- Tem algo que possamos fazer? Indagou Miguel.
-- Não. Só peço que não olhem aquilo que serei obrigado a fazer.
-- Vai morrer?
-- Talvez. Mas antes preciso impedir que este insano continue a vagar por este mundo.
-- Tem poder para tanto?
-- Sim. Mas imploro, não olhem!
-- Por que?
-- Não suportariam a visão daquilo que irá acontecer.
-- Tudo bem. Ninguém irá olhar.
-- Obrigado.
-- Pessoal, quero que se virem para lá e não voltem a olhar nesta direção até que sejamos convidados.
Mesmo não entendendo o motivo do pedido, todos atenderam a solicitação feita por Miguel. Livre dos olhares humanos, desfiz-me de minhas vestes e ensandecido como uma fera a defender-se de seu agressor, lancei-me sobre Varjianski.
Confiante como estava, ele não esperava pelo ataque. A surpresa foi decisiva para que tivesse sucesso em minha investida. A ação foi grotesca. Minhas garras e meus caninos rasgaram cada centímetro do corpo de Varjianski. Em poucos minutos ele estava destroçado e sem vida. Seu sangue banhava o chão do beco.
Enfraquecido que estava por ter utilizado minhas energias no ataque e pela ferida causada pelo punhal, não resisti mais e desabei. O som surdo de meu corpo chocando-se contra o solo fez Miguel voltar-se para a cena. A visão que teve encheu-o de nojo.
Usando de toda sua determinação para vencer a repulsa, ele foi até o lugar onde estava caído e me arrastou para fora do beco. Nem mesmo quando viram seu líder me arrastando, seus companheiros voltaram-se na direção da batalha.
-- Venham. Conclamou. Precisamos levá-lo a um hospital.
-- Não podemos! Adiantou-se Joaquim.
-- Como não?
-- O que diremos aos médicos? Qualquer que seja a desculpa, eles chamarão a polícia.
-- Joaquim está certo. Manifestou-se Ernesto. Não podemos levá-lo a nenhum hospital.
-- Não podemos deixá-lo morrer. Insistiu Miguel.
-- Podemos levá-lo para a chácara de minha tia. De lá ligo para meu tio e peço que ele o atenda. Sugeriu Samantha.
-- Então vamos.
Joaquim correu até o cemitério e levou um dos carros para o beco. Acomodados em seu interior, seguimos para a chácara. O trajeto foi demorado, mas no estado em que me encontrava, qualquer cinco minutos pareceriam uma eternidade. Em minha mente estava clara a certeza de haver chagado minha hora.
Sem revelar ao tio minha condição, Samantha solicitou que me ajudasse. Ele ficou muito nervoso, mas acabou me atendendo. Sua habilidade foi decisiva para que não viesse a perecer. Minhas energias estavam tão fracas que nem mesmo a dor era registrada.
Demorou três meses até que voltasse a recobrar os sentidos. A espera deveu-se ao fato de não poder suprir minhas necessidades de sangue. Caso meus amigos houvessem me “abastecido” com uma quantidade maior, teria me restabelecido mais rapidamente.
Quando consegui me sentar no leito, senti a pressão de mãos me detendo. Não resisti a pressão por não ter forças para tal. Mansamente voltei a afundar-me no colchão. Descerrei os olhos e fui saudado por dois lindos olhos azuis.
-- Boa tarde, seu preguiçoso.
-- Samantha! Onde estou?
-- Na casa de amigos.
-- Os outros?
-- Estão cuidando da vida. Mais tarde todos estarão aqui.
-- Como pode ter certeza?
-- O que! Acha que iriam desperdiçar a oportunidade de incomodá-lo com um monte de perguntas bobas?
-- Alva?
-- Ela está meio confusa. Sabe como é, nós éramos apenas amigos, mas ela se envolveu muito mais.
-- Eu sei.
-- Mas antes que os outros cheguem, me diga lá como é ser um vampiro?
Meu olhar plangente não deixou margens para dúvidas. Abaixando sua cabeça, ela simplesmente balbuciou:
-- Sinto muito.
-- Não se entristeça. Com vocês aprendi muito. Recebi tesouros que jamais esquecerei.
-- Esquecer? Não está...
-- Sabe que não tem outra saída.
-- É, eu sei!
-- Mas não se aborreça. De vez em quando apreço por aqui.
-- Mesmo!? O entusiasmo dela foi como se o sol brilhasse dentro do quarto.
-- Mesmo!
Sem conter-se, ela comemorou a novidade me dando caloroso beijo. Ao afastar-se, olhou-me constrangida.
-- Desculpe-me, sei que está apaixonado por Alva, mas me deixou tão feliz.
-- Não tem porque se desculpar. Mesmo porque sabemos que não pode existir nada entre Alva e eu.
-- Por que não?
-- Seria doloroso demais.
-- Como assim?
-- Já imaginou assistir a pessoa que ama se definhando sem poder fazer nada? Observar enquanto o tempo a enfraquece tirando-lhe a vida e não poder impedir que a morte a leve? Não! Não suportaria viver isto e nem ela iria suportar.
-- Acho que tem razão. Eu não gostaria de ver o homem que amo permanecer jovem enquanto eu envelheço. Você está certo.
A noite chegou e com ela os amigos. Todos estavam eufóricos pelo meu restabelecimento. Os comentários eram os mais auspiciosos possíveis. Agradecimentos e rogos se misturavam. Somente Alva não havia vindo. Intimamente podia sentir o medo que a dominava.
Aos poucos todos foram partindo. A noite estava começando a avançar pela madrugada e todos tinham suas obrigações. O último a deixar a chácara foi Ernesto.
-- Ainda bem que já foram.
-- Não me consta que o desagrade a companhia dos demais.
-- Não mesmo. Mas aquilo que tenho para lhe falar não poderia fazer na presença deles.
-- De que se trata?
-- É sobre Alva.
-- Sei.
-- Bem, antes de você aparecer, bem, a gente estava numa de tentar se acertar. Entende?
-- Entendo.
-- Pois é. Agora ela já não sabe mais o que fazer.
-- Não há nada a temer. Vocês serão muito felizes.
-- Eu até tentei falar para ela que não importava ... como é? O que foi que disse?
-- Disse que serão muito felizes.
-- Mas pensei que...
-- Eu sei. Mas não daria certo.
-- Posso contar a ela?
-- Pode. Diga também que compreenderei se ela não quiser vir me ver.
-- Eu direi.
Após a saída de Ernesto me senti mais aliviado. Em meu peito ainda batia o mesmo sentimento que me prendera aquele lugar. Os olhos meigos de Alva jamais deixariam minhas lembranças. Talvez eles servissem de escudo a proteger-me dos inúmeros outros olhos que me acusavam sem cessar. Fosse como fosse, não havia a possibilidade do nós.
Em mais um mês estava pronto para deixar a chácara. Os amigos desejaram uma festa de despedidas. Não querendo desagrada-los, concordei. Não me sentia disposto a participar de nenhuma festividade, mas o motivo valia a pena. Meus amigos eram o bem mais precioso que havia recebido.
Para coroar a noite da despedida, a lua se mostrou mais majestosa que nunca. Seu brilho era tão intenso que mesmo ele me fez recordar-me do olhar de Alva. Um profundo suspiro perdeu-se no vazio.
-- Tudo isto é paixão? Zombou Samantha.
-- Fazer o que?
-- Para onde vai?
-- Talvez voltar para a Europa.
-- Um pouco longe, não?
-- Há anos que não vou até lá.
-- Existem outros iguais a você?
-- Sim.
-- Muitos?
-- Não. Nossa reprodução é muito rara.
-- Mas acontecem.
-- Uma a cada quinhentos anos.
-- Tão rara assim?
-- É que não costumamos coabitar, entende.
-- Entendo.
-- Bem, é hora de ir ver os amigos.
-- Só mais um detalhe.
-- Sim.
-- Ela está aqui.
-- Quem?
-- Alva. Ela veio para a festa.
-- Pensei que não fosse vir.
-- Mas veio.
-- Neste caso, devo manter-me controlado.
-- Você consegue?
-- Muitos anos de prática.
-- Seu bobo!
A descontração nos abraçou como se fosse uma fada aconchegando duas crianças. Minhas feridas ainda doíam, mas minha alma estava mais leve naquela noite. Talvez porque meus fantasmas não estivessem por perto.
Estava descontraidamente conversando com um grupo de amigos quando o inevitável aconteceu. Alva surgiu do meio de alguns rapazes e dirigiu-se a mim com graciosos passos.
-- Podemos conversar?
-- É claro.
-- Não aqui. Venha.
Em silêncio a segui até um lugar escondido que ficava atrás de uma cerca em ruínas. O mato era bem alto naquele local e fofo também. Não fazia a menor idéia para onde estávamos indo.
-- É aqui. Chegamos!
-- Lugarzinho difícil de encontrar.
-- Samantha e eu cansamos de nos esconder aqui quando éramos crianças.
-- Ah!
-- Precisava falar com você antes que se fosse.
-- Estou aqui.
-- Sabe que eu o amo muito.
-- Eu também a amo.
-- No entanto, estamos condenados a esquecer este amor.
-- É inevitável.
-- Eu sei.
-- Lamento te-la envolvido tão irresponsavelmente.
-- Não, não se lamente pois eu, embora sofra com sua partida, não lamento saber que o amo.
-- Mesmo sabendo que isto a fará sofrer?
-- Ainda que morresse por amá-lo, não me arrependeria de o sentir.
-- Se pudesse modificar minha natureza.
-- Não podemos alterar aquilo que nos foi dado pela vida. Saberei viver sem sua presença e espero que saiba suportar minha ausência.
-- Esta será a dor maior que me ferirá por toda eternidade.
-- Se mantiver este amor vivo em seu coração, poderá aliviar a dor que nasce da ausência do ente querido.
-- Mas a ausência sempre será mais viva.
-- Não. Não para nossos corações.
-- Posso ao menos dar-lhe um último beijo?
-- Esperava que pudesse me dar mais que isto.
Por um momento me vi deitado ao lado da mulher que se apodera de meu coração. Senti o calor de seu corpo misturar-se ao meu e nossas bocas buscarem-se com sofreguidão. Minhas mãos roçarem sua nudez macia enquanto as suas corriam sobre meu dorso desnudo. Respiração alterada pela emoção de nos tornarmos um e a ventura da entrega que se faria até que nossos corações sentissem o auge da paixão e explodíssemos em uma torrente de plenitude. Porém tudo não passou de uma visão efêmera.
O solitário e cálido beijo que selou nossa despedida serviu para arraigar ainda mais o sentimento que se enraizara em nossos corações. Com lágrimas a verterem sem controle, libertei-a e permiti que se fosse. Sem olhar para trás, ela seguiu para onde a festa prosseguia.
Ainda permaneci por alguns minutos desejando que ela voltasse e me pedisse para não ir, mas nada. Ela não voltou. Também poderia ter olvidado tudo e corrido atrás dela, abraçado-a com ardor e me entregado ao desvario da paixão sem limites, mas também nada fiz. Fiquei ali, parado e chorando.
Agora já não estou mais preso a cripta de meu mausoléu. Aqui na Europa posso desfrutar de uma prisão maior e mais confortável. O velho castelo que pertenceu a minha família ainda é bem acolhedor. Embora tenham se passado dez longos anos desde minha última aventura, sinto que jamais esquecerei o anjo que um dia se apossou de meu coração.
Ainda hoje recebi uma carta de Samantha. Ela é a única que sabe sobre meu paradeiro. Na missiva ela conta que Alva e Ernesto estão para ganhar um novo filho. Já é o terceiro. O grupo sente saudades mas compreende minha ausência. Mesmo O tio confessou que sentiu admiração por mim.
Aqui no castelo não estou livre da companhia dos fantasmas que tanto me fustigavam na cripta, mas como Alva dissera, o amor que vibra em minha alma ajuda a aliviar a angústia que domina minha existência.
As vezes me pergunto o que teria acontecido se decidisse esquecer minha natureza e ficado com Alva. É um sonho muito lindo, mas apenas isso. Não poderia ter exigido tanto assim de alguém a quem amo. Melhor ela experimentar as venturas do amor com alguém que pode lhe proporcionar as benesses de uma vida tranquila e normal.
Eu, por meu lado, sigo minha sina. Quando a noite chega, olho para o céu estrelado e vejo os olhos de Alva brilhando para mim. Se sinto minhas necessidades se avolumarem, deixo a proteção do castelo e saio a caça. Com certeza minha decisão foi a mais acertada. Como poderia desejar que um anjo pudesse tornar-se cônjuge da morte?

Autor: Darkness


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